terça-feira, 31 de julho de 2012

O maior livreiro do Brasil


Melquisedec e João Câmara na Praça do Sebo
Fotografia de Clóvis Campêlo/1991 

O MAIOR LIVREIRO DO BRASIL

Clóvis Campêlo

Quem com ele troca idéias e palavras, fica com a certeza de que se trata de uma pessoa racional e atenta aos conceitos do mundo moderno. Para consolidar essa impressão, define-se como "um homem de esquerda", que cita Marx e Lennin nas suas falações.
No seu box, na Praça do Sebo, porém, mantém um eclético santuário onde convivem, em perfeita harmonia, as imagens de Padre Cícero, N. Sª. Aparecida, Exu Tranca-Rua, Pomba-Gira e do Cabloco Pena Branca, entre outros. Um pouco de fé mística, afinal, não faz mal a ninguém.
Grande conhecer da música brasileira das décadas de 40 e 50, também navega com certa desenvoltura pelas águas da Bossa Nova e do Tropicalismo. Em relação à música pernambucana, prefere Nélson Ferreira à Capiba e faz críticas moderadas ao Movimento Mangue, sem nenhum xenofobismo, "pelo excesso de anglicismos".
Crítico pertinaz da falta de sensibilidade dos orgãos oficiais de cultura, está sempre cercado de bonitas secretárias e ultimamente adotou a fotografia como passatempo.
Foi com essa figura ímpar, chamada Melquisedec Pastor do Nascimento, o maior livreiro do Brasil, que iniciamos uma série de depoimentos para o fanzine Pipoca Moderna.

A ORIGEM

"Sou recifense, nascido dentro dos mangues do bairro dos Afogados, no dia 3 de janeiro de 1921. Minha instrução começou numa Escola Particular Mixta, onde me desasnei aprendendo a ler na Carta de ABC de Landelino Rocha. Eis aí todo o meu currículo escolar. Extremamente pobre, minha mãe, que me criou sozinha, dizia: "Entre estudar e trabalhar, não podendo fazer os dois, trabalhe-se!". Passei a trabalhar e a estudar na escola da vida".

A PROFISSÃO

"Habituei-me a ler lendo folhetos de feira, almanaques de farmácia e jornais, estes motivado pelo retrato da vítima. Depois revistas, depois livros. A cutiosidade por esses, levou-me ao sebo do negro Manoel Berlamino da Silva, o qual me iniciou na profissão, levando-me a vir a ser o maior livreiro do Brasil. O meu reconhecimento da importância do comércio de livros usados e a minha dedicação a ele, deram-me esse laurel. Considero minha profissão a mais digna de todas as profissões".

OS PROBLEMAS

"Os poderes públicos têm coisas mais nobres com que se preocuparem... Os sebistas do Recife transbordaram da Praça do Sebo e espalharam-se pelo centro da cidade, vivendo como Deus é servido... Como sebistas, alfarrabistas, antiquários ou libervelheiros o que é positivo é dignamente semear livros. Efetivamente, apenas o Dr. Gustavo Krause foi sensível ao comércio de livros usados aqui no Recife, agrupando os sebistas no Mercado de Livros Usados. Os poderes públicos não são sensíveis à problemática da educação, sequer..."

IDEOLOGIA

Sensível à questão social desumana, tornei-me um homem de esquerda, a única pauta para julgar a conduta humana, verificar se contribue ou se opõe à causa do socialismo".

A SITUAÇÃO DO PAÍS

"A situação política e cultural do país despenca e não vejo nada que esteja se fazendo para ampará-la. A solução seria criar escolas primárias para oferecer instruções sobre patriotismo. E que os dirigentes criassem vergonha na cara."

A PRAÇA DO SEBO

"A Praça do Sebo ou corretamente o Mercado de Livros Usados do Recife, foi o movimento mais promissor para a cultura que se fez nesta cidade. Reuniu-se em local digno sebistas precariamente instalados aqui e ali. Eram pequenos comerciantes que, mais ou menos, contribuíam para a continuação desse comércio, então um tanto estagnado. Contamos com a iniciativa e o apoio de Liêdo Maranhão, Francisco Balthar Peixoto, Paulo Roberto de Barros e Silva e Edson Wanderley, entre outros, simpáticos a esse comércio cultural. O então prefeito Gustavo Krause determinou a construção. Foi feito um convênio entre os sebistas e a Prefeitura. Infelizmente as administrações Jarbas Vasconcelos encarregaram-se de não cumpri-lo. Hoje, a situação da Praça do Sebo é deprimente para a educação e a cultura recifenses. A solução seria a Prefeitura cumprir as exigências que lhe impõe o convênio estabelecido por ela mesmo para o funcionamento do Mercado de Livros Usados do Recife".

MENSAGEM FINAL

"Para finalizar, uma mensagem aos leitores pipoqueiros: é preciso ler, é preciso ir aos sebos, santuários de raridades bibliográficas a preço de sebo. Além do mais, é preciso entender que o conceito ideal de cultura é personalizar o indivíduo, desenvolver o raciocínio e a imaginação. Integrá-lo na educação e na cultura, refinar-lhe o espírito. Prepará-lo para a vida".

Recife, 1997

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Nostalgias da casa grande e da senzala



NOSTALGIAS DA CASA GRANDE E DA SENZALA

Clóvis Campêlo

Não é só o petróleo que é nosso. A dívida e a dúvida também. Até hoje eu me pergunto se sou credor ou devedor à história. Não só pelo que fiz, mas também pelo que deixei de fazer. Um dia, ainda tiro esse peso dos ombros, deixo de racionalizar o pensamento e trato de ser feliz. Somente isso.
Não gosto de pensar em bloco, embora toda a (des)educação que tive, ao longo da vida, leve-me a isso. Nadar contra a corrente, sempre, não é fácil. E não é só para se exercitar. É mesmo uma questão de sobrevivência, de exercício da liberdade (se é que ela existe).
Meu avô paterno era um preto metido a besta. Casou com uma mulher branca descendente de portugueses, ficou rico, foi vereador em Jaboatão dos Guararapes e contrariou todas as regras sociais do seu tempo. Um atrevido que me deixou imerso em dúvida imensa.
Pelo lado materno, sou descendentes de portugueses e espanhóis que, por seu lado, tiveram origens sarracenas. Fizeram parte das classes produtoras rurais pernambucanas, decaíram e hoje vivem, a grande maioria, numa pobreza franciscana.
Eu, para complicar ainda mais a história, completamete desorientado, casei-me com uma índia maranhense de hábitos e costumes diferenciados.
Como podem ver, um tremendo angú de caroço. Não sei se sou branco, negro ou mestiço. E meus filhos? E meu neto, um galego transgressor?
Onde diabo vamos parar?

Recife, 2010


sexta-feira, 20 de julho de 2012

No dia em que eu vim ao mundo


NO DIA EM QUE EU VIM AO MUNDO

Clóvis Campêlo

No dia em que eu vim ao mundo,
não houve nada de novo.
Fez-se a luz em um segundo
e logo juntei-me ao povo

que por aqui habitava.
Livre do colo materno,
nem mesmo eu mais lembrava
que tudo ali era eterno.

Talvez tenha visto o brilho
de uma estrela distante,
mas eu queria era o trilho
do meu caminhar errante.

Um estribilho inventei,
que a vida é sopro e leveza,
e repetir-se é a lei
que comanda a Natureza.

No dia em que eu vim a Terra,
não teve nada de mais;
não se acabaram as guerras,
nem inventaram a paz.

Recife, 2011

terça-feira, 10 de julho de 2012

Entre anjos e demônios


ENTRE ANJOS E DEMÔNIOS

Clóvis Campêlo

Que cada um cuide bem dos seus demônios.
Eu também tenho os meus e os trato a pão-de-ló.
São eles que me ressuscitam para vida quando me sinto sufocado e anestesiado pelos sons celestiais dos anjos que se vendem a prestação em cada esquina da cidade.
Que cada um cuide bem dos seus demônios.
Aproveitem enquanto ainda estão marginalizados e não se tornaram produtos rentáveis explorados pela sociedade de consumo.
Que cada um cuide bem dos seus demônios, pois sem eles seríamos metade, incompletos e não beberíamos na fonte rejuvenescedora da maldade.
Que cada um cuide bem dos seus demônios, explorem a sua permissividade, a sua falta de pudor, de ética, de moral, pois sem eles jamais saberíamos os limites entre o certo e o errado.
Que cada um cuide bem dos seus demônios, pois sem eles morreríamos de tédio, esqueceríamos os prazeres mundanos, desconheceríamos o lado impuro e podre de cada um de nós.

Recife, 2009

- Publicado no livro Antologia 2010 dos Poetas Independentes. Recife, Edição dos Autores, 2010, páginas 45.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Pra não dizer que não falei do amor



PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DO AMOR

Clóvis Campêlo

Pra não dizer que não falei do amor
despojei-me de qualquer medida,
encarei sem receio a própria vida,
sanei no verso torto toda dor;

busquei lembrar do brilho dos teus olhos,
do toque morno da língua em tua boca,
do teu corpo úmido, nú, sem roupa,
do teu regaço onde me recolho;

joguei por terra a vã filosofia,
transformei profundo abismo em ponte,
fiz do firmamento novo horizonte,
transpus em noite quente a tarde fria.

Pra não dizer que não falei do amor.

Recife, 2007