quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Amor de Perdição


AMOR DE PERDIÇÃO

Clóvis Campêlo

A segunda geração do Romantismo português se deu entre 1838 e 1860. Essa geração, livre das influências arcádicas ainda presentes na primeira geração romântica, ultrapassou os limites da estética, desembocando no ultra-romantismo, onde se esgotaria, resultando, por sua vez, no Realismo.
Pertencente a segunda geração, Camilo Castelo Branco é o típico representante dessa fase. Em suas obras, das quais Amor de Perdição se constitui na mais famosa, a estética romântica se apresenta em toda a sua plenitude.
Ora, sabemos que as circunstâncias sociais, políticas, econômicas e culturais que permitiram a ascensão burguesa e a consolidação da ideologia romântica abriram espaços para o aparecimento de um público consumidor que se relacionava com o autor de maneira diferente. Saindo de cenário a figura do mecenas protetor, era necessário ao escritor atingir o sentimento das camadas ascendentes para que o seu produto, temperado com as novas matizes, fosse aceito e garantisse a sua sobrevivência.
Escrevendo sempre por encomendas e enfrentando dificuldades financeiras desde muito cedo, Camilo Castelo Branco teria de ser possuidor de uma agudeza de espírito suficiente para sintonizar com o estado emotivo do grande público. Em que pese o caráter romântico da sua própria vida, sempre envolvido em conquistas amorosas e em polêmicas, manifesta essa visão pragmática mesmo no fim da vida quando envereda pelos caminhos do Realismo, já a gosto do grande público.
No prefácio para a quinta edição portuguesa de Amor de Perdição, publicada em 1879, portanto já bem depois da segunda fase do Romantismo português (a primeira edição é de 1862), o autor reconhece que “visto à luz elétrica do criticismo moderno”, o romance se apresenta “romântico, declamatório, com bastantes aleijões líricos, e umas idéias celeradas que chegam a tocar no desaforo do sentimentalismo”. Mais adiante, afirma que romance que “fez chorar”, agora “faz rir”. Tal opinião refaz o ponto de vista expresso pelo autor no capítulo XIX do próprio livro quando afirma que “um romance que se estriba na verdade o seu merecimento é frio, é impertinente, é uma coisa que não sacode os nervos”. Autocrítica? Duvidamos, considerando que no mesmo prefácio citado, o autor, ironicamente, afirma que “o bom senso público relê isto, compara com aquilo, e vinga-se barrufando com frouxos de riso realista as páginas que há dez anos aljofarava com lágrimas românticas”. No máximo, entendemos que o autor teria tido a sensibilidade de perceber que o público leitor estaria se mostrando receptivo a uma nova estética advinda do esgotamento da filosofia ultra-romântica.
No que se refere ao romance propriamente dito, ele é composto de vinte capítulos, mais a introdução e a conclusão, onde é contada a história do amor entre Simão Botelho, tio do autor, e Teresa de Albuquerque. Segundo o próprio romancista, o livro foi escrito em quinze dias, na cadeia da cidade do Porto, onde Camilo se encontrava preso sob a acusação de adultério.
O romance é narrado na terceira pessoa, pelo próprio autor, usando o pretérito como tempo narrativo. Da sua condição de narrador, aproveita-se o autor para tecer considerações filosóficas, algumas repletas de uma ironia mordaz que nos lembram, de longe, a prosa machadiana. Observemos, também, que em vários momentos os sentimentos do narrador se confundem com os sentimentos do personagem Simão, o que se explicaria, talvez, pelo fato do livro haver sido escrito por Camilo em uma situação que muito se assemelhava à situação vivida pelo tio: estava prisioneiro na mesma cadeia, como conseqüência igualmente de uma relação amorosa.
No primeiro capítulo, o autor traça uma pequena genealogia mostrando as origens da família de Simão, sua também, onde não faltam doses de sarcasmo e ironia, como ao atribuir às broas de milho comidas na juventude pelo seu avô, Domingos Botelho, a culpa pela sua feiúra e pouca inteligência. Ao descrever a descendência da avó paterna, dona Rita Teresa Margarida Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo Branco, Camilo também não deixa por menos ao mencionar a glória “um pouco ardente” do general seu antepassado morto frito em um caldeirão sarraceno. Neste capítulo, o autor traça ainda, embora da maneira superficial que lhe é peculiar, o perfil psicológico de Simão, mostrando-o como uma pessoa impetuosa e agressiva, o que mais adiante, no desenrolar da história, resultaria no assassinato que o levaria à prisão fatal. Embora dotado desse temperamento decisivo, Simão, como quase todos os personagens românticos, notadamente os camilianos, não resiste à força do amor que, embora de início o redima, termina por ser a sua perdição.
No segundo capítulo, o autor situa historicamente o acontecimento: início do século XVIII, quando Portugal dividia-se entre os admiradores das teorias liberais vindas da França, entre os quais se colocava Simão, e os setores mais conservadores que ainda defendiam a monarquia absolutista. Atravessando um momento difícil, Portugal tentava manter-se neutro na questão entre a Inglaterra e a França. Indispor-se com a primeira significava enfrentar uma guerra que levaria ao enfraquecimento econômico da nação portuguesa, pois além do comércio crescente que Portugal mantinha com a Inglaterra e que seria interrompido, também seria cortado, pela forte esquadra inglesa, o acesso marítimo ao Brasil. Por outro lado, indispor-se com a França significava a possibilidade de ter o território português invadido pelas forças francesas, aliadas aos espanhóis. Adepto das idéias francesas, que considerava portadoras do progresso – segundo José Hermano Saraiva, a questão entre absolutistas e liberais, em Portugal, teria aí se iniciado -, Simão é preso por defende-las em praça pública, sendo enviado à casa dos pais, em Viseu, onde conhece Teresa, filha de um vizinho desafeto do seu pai, e por quem se apaixona, dando início à trama do romance.
A partir daí os capítulos restantes dedicam-se exclusivamente à narração do drama passional que envolve Simão e Teresa. Possuídos pelo sentimento da paixão, caminham inapelavelmente para o desfecho fatal.
Além de Simão e Teresa, são personagens dignos de destaque no romance os pais do protagonista, Domingos e Rita, ele de família fidalga, mas de parcos atributos físicos e mentais; ela, bonita, filha de um capitão de cavalos. Do casamento entre eles, “desgostoso”, segundo o autor, nasceram os filhos Manuel, o mais velho e pai de Camilo, Simão e três irmãs que pouco destaque têm no romance. Pelo lado de Teresa, podemos destacar o seu pai, Tadeu de Albuquerque, que se opõe ao romance por ser desafeto de Domingos Botelho, e Baltazar Coutinho, primo de Teresa, escolhido por Tadeu de Albuquerque para desposa-la, que acaba sendo assassinado por Simão, no desenrolar da história. Podemos citar ainda João da Cruz, ferreiro liberto da prisão graças a um indulto concedido pelo pai de Simão, e que, por conta desse favor, sente-se na obrigação de protegê-lo na sua empreitada, e Mariana, filha de João da Cruz, que se apaixona por Simão e também termina tragicamente.
Dentro desse contexto o romance acontece e chega a um final infeliz: um amor arrebatador entre dois jovens filhos de famílias inimigas, que, impossível de se concretizar, deságua na morte. Se o espírito romântico, por um lado, já admitia a possibilidade de um relacionamento dessa natureza, onde os sentimentos desafiam a hierarquia familiar prenunciando fissuras nessa estrutura, por outro lado, ainda não oferecia condições para um desfecho que não fosse a tragédia.
Assim, admitia o gesto embora o castigasse.


Recife, 1992

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