sábado, 29 de março de 2014

Um pouco de redundância, por favor!


UM POUCO DE REDUNDÂNCIA, POR FAVOR!

Clóvis Campêlo

Somos seres miméticos. Aprendemos a viver assim. Repetimos gestos e ideias à exaustão. Do beabá inicial aos discursos filosóficos transcendentais, somos repetitivos e raciocinamos em bloco. A redundância nos redime.
Por isso, as atitudes diferenciadas tendem a ser punidas e eliminadas. Constituem-se em ameaça à continuidade das coisas. Até no jargão futebolístico, existe a máxima de que em time que está ganhando não se mexe. Basta repetir-se e pronto, o sucesso está garantido.
Exercitar o senso crítico, portanto, não é nada fácil no mar de mesmices em que vivemos. Afinal, para que nadar contra a corrente se o final sempre é o mesmo? Só os mais inquietos, patologicamente inquietos, aventuram-se a tanto.
No entanto, se a mesmice cansa e bitola, o excesso de novas informações também pode travar os 10% utilizados pela nossa cabeça animal. A novidade deve sempre ser servida em doses homeopáticas, haja visto que o excesso deixa de ser remédio e transforma-se em veneno. E, se não nos matar, vai jogar-nos no isolamento temporal, do qual, em alguns casos, só se consegue sair depois da morte. Para quem não acredita em reencarnações, aliás, o pós morte não serve para nada. Finda a vida, findo o mundo, finda as palavras. O morto não pensa, não fala, não discute mais e nem externa ideias ou ideais. O morto apenas se decompõe.
Aos vivos, portanto, cabe a continuidade e a comunicatividade do mundo. E tome redundâncias! Exercitar o senso crítico em relação a si mesmo e aos cosmos, no mundo dos vivos, não é nada fácil, embora extremamente necessário na maioria das vezes. Pensamos, logo existimos! Questionamos, logo resistimos! Até quando, porém, acho que nem mesmo Deus sabe!
Como, apesar de só utilizar 10% da sua cabeça animal, a espécie humana conseguiu evoluir e sofisticar o ato de raciocinar, vive a contradição de ter de alimentar a redundância para sobreviver nos níveis superiores da linguagem e de ter que exercitar novas formas de informação para transgredir e evoluir. Assim caminha e sempre caminhou a humanidade ao longo do tempo.
O homem sábio, portanto, tenta exercitar o equilíbrio na vida, na linguagem e nas informações. Hora tende para um determinado lado, hora para o outro, mas sempre com a consciência de que tenta evoluir e ser entendido ao mesmo tempo. De nada adianta o hermetismo ou o ludismo das invenções mirabolantes se o resultado final for o desentendimento.
Os inventores e artistas que tendem por esse caminho correm o risco de morrerem incompreendidos e só serem decifrados e decodificados pelas gerações futuras e posteriores, quando a contravenção se transformar em regra e consolidar-se como matéria assimilada e incorporada ao modo de vida dos nossos sucessores.
Aos afobados futuristas, portanto, eu peço um pouco de redundância, por favor!

Recife, 2014

terça-feira, 25 de março de 2014

Pedaços


PEDAÇOS

Clóvis Campêlo

Há tanto tempo me perco,
há tanto tempo me acho,
nem mesmo sei dos meus medos,
nem onde estão meus pedaços.



Recife, 2006

sábado, 22 de março de 2014

Torto


TORTO

Clóvis Campêlo

Quando a morte a ti trair
e enganar-te a inteligência,
não penses pedir clemência,
nem peças para sair.

Vista-se com domingueira,
enfeite o leito com flores,
disfarce com mil odores
a hora que é derradeira.

No entanto, se alguém em "ais"
liberta gritos primais
em ânsias de despedida,

mostre-lhe um riso morto
- o certo se escreve torto -
e apenas é o fim da vida!

Recife, 1991

quinta-feira, 20 de março de 2014

Entre a cabeça e o coração


ENTRE A CABEÇA E O CORAÇÃO

Clóvis Campêlo

Entre a cabeça e o coração,
estão mais que sete buracos,
sensores democráticos.
Entre a cabeça e o coração,
estão todos os sabores,
a matiz de todas as cores,
os sons da audição.
Entre a cabeça e o coração,
estão o gosto e o tato,
o ilusório e o de fato,
o real e a sensação.

Recife, 2011

terça-feira, 18 de março de 2014

Bom dia, mulher-aranha!


BOM DIA, MULHER ARANHA!

Clóvis Campêlo

Bom dia, mulher aranha!
Mais uma vez tecendo a sua teia,
como é da natureza de todas as aranhas.
Dizem que o canto das aranhas
é mais poderoso do que
o canto das sereias.
Acredito!
Eu mesmo já me sinto
irreversivelmente por ele
envolvido.
De nada adiantou aumentar
o volume dos Stones na vitrola.
De nada adiantou o grito aflito
da buzina do meu carro.
De nada adiantaram os
três apitos da fábrica de tecidos
ferindo os meus ouvidos.
Rendo-me e peço clemência.
Submeto-me ao encantamento
da doce melodia.
Mergulho na rede com a certeza
do inelutável e do ineludível.
Mais uma vez,
o futuro me absolverá!

Recife, 2006

sábado, 15 de março de 2014

A poetisa que veio do frio


A POETISA QUE VEIO DO FRIO

Clóvis Campêlo

É duríssima a tarefa de meter a colher nos textos alheios. Ainda mais quando não se é convidado. Mas, alimentado pela curiosidade que move montanhas, arrisco-me a trilhar o caminho quente que me aponta o vento frio vindo do sul – talvez o minuano.
A curiosidade existia até mesmo antes do carteiro chegar e o meu nome gritar com o livro na mão. E embora o seu título – Requiém – sugerisse um canto triste de celebração à vida que já se fora, sigo o caminho vivo que se oferece, pois é caminhando que se faz a caminhada.
Descubro surpreso que, na verdade, o que a poetisa canta é a vida fluindo. E mesmo exaurindo-se nesse fluir, é chama intensa a queimar o seu combustível. O livro nada mais é do do que a constatação de que a vida plena é mesmo aquela que precisa ser consumida para manter o caminho aceso e transitável. Não há outra possibilidade. Mesmo podendo exercer a contestação cósmica, necessita o poeta da vida para construir/consumir as suas visões e proposituras.
Nos seus versos, entende a poetisa que a transitoriedade da vida sempre esbarra na mutação final da morte libertadora, mesmo que seja para cair em outra situação que ainda seja incógnita, mas novidade.
Assim é a pedra de alma inquieta que rola, rola e se desmancha, ou o mundo, que num ímpeto libertário, solta-se da sua mão, escorrega no escuro, e num deserto furo (buraco negro?), lá se vai, lá se vai.
Em outro poema curtíssimo, hai-kai transfigurado, ordena à vida que fuja e que se esconda, pois que a morte ruge e urge.
No poema Visões, a poetisa exercita ao máximo o seu tom contestatório, expondo as contradições do discurso vazio do homem moderno, cujas ações e atitudes jogam por terra a redundância das máximas inúteis e contrariadas.
Em outro poema, Requiém, o qual serve para intitular o livro, fala das dores das esperas inúteis, muito embora deixe também transparecer que sempre haverá um recomeço e uma nova esperança a ser exercitada. No bojo da transitoriedade do presente, o futuro reabilitará o passado sempre e as dores outonais diferenciam-se de todas as outras dores da vida, pois que o outono nada mais é do que uma síntese amadurecida dos tempos vividos.
Na fotografia da contracapa do livro, aliás, a poetisa parece procurar no infinito os vestígios do que definitivamente já se foi, passado a se metamorfosear em futuro. Nem mesmo parece querer observar as notícias do mundo que ainda existe e que estão estampadas nas primeiras páginas dos jornais iluminados pelo sol da manhã na banca de revistas por detrás de si.
Eliane Triska, a poetisa que veio do frio, nasceu em Porto Alegre, em 1953, mas o mar da vida a levou para Canoas, cidade situada a pouco mais de 13 quilômetros da capital gaúcha, numa região anteriormente habitada pelos índios Tapes. É de lá, da sua aldeia, que emite os poemas sinceros e universais que compõem o livro recém-lançado.


Recife, 2014

quinta-feira, 13 de março de 2014

Tudo valerá


TUDO VALERÁ

Clóvis Campêlo

Se nem tudo vale a pena,
a pena valerá tudo.
Mesmo com alma pequena
existirá um contudo

que beirando o absurdo,
em trajetória serena,
emitirá um som surdo
de transformação amena.

E assim, surgindo do nada,
dar-se-á novo universo,
compondo nova camada,

do anterior o inverso,
com cores mais camaradas
e organizado diverso.

Recife, 1994

terça-feira, 11 de março de 2014

Em vão


EM VÃO

Clóvis Campêlo

Pela cidade em vão vagueio,
procuro rostos conhecidos
outrora e que me são perdidos
entre outros vultos alheios.

Encantaram-se os amigos,
mergulho em outra multidão,
embora seja o mesmo chão
pisado em tempos antigos.

Oh, cidade estranha e cruel,
nem mesmo o azul do teu céu
me faz sossegar as entranhas;

nem mesmo o brilho das tuas águas
a mim tranquiliza as mágoas,
a ansiedade tamanha.

Recife, 2008

sábado, 8 de março de 2014

Sonho


SONHO

Clóvis Campêlo

Ontem à noite, sonhei
que dobravas a esquina
de qualquer rua do Pina.
Como os atalhos
eu mesmo traço,
apanhei-te de surpresa
em um abraço.
Notei que estremecias
e acordei de sobressalto
em plena luz do dia -
já não estavas mais
em meus braços!
Não convencido,
olhei para o teu retrato
na parede do meu quarto.
Ainda sorrias e
o sonho não começara
Aquietei-me
e fui dormir em paz.


Recife, 2006

quinta-feira, 6 de março de 2014

Auto-retrato


AUTO-RETRATO

Clóvis Campêlo

Sou a reta e sou a curva,
a mão esquerda e a direita,
o verão na praia do Pina
e a chuva que adoça o caju.

Sou a revolução que não houve,
as dúvidas da certeza
e a alegria das dúvidas.

Sou o pai e sou o filho,
o vento que anuncia tempestades,
o raio que corta o céu ao meio
no meio da tarde.

Sou martelo agalopado,
entidade de corpo fechado,
soneto na nova medida
e a bandeira de São João.

Sou Elefante e Pitombeiras,
sou o Galo da Madrugada,
sou o barulho da feira
e o som da procissão.

Sou o amarelo de Nossa Senhora
e o azul de Iemanjá,
sou calmaria sem vento,
sou selva de pedra e cimento,
relva plantada no chão.

Sou o tudo e sou o nada,
o silêncio e a batucada;
sou o sul e sou o norte,
faca cega e navalha de corte.

Eu sou o fogo da vida
e sou o sopro da morte!

Recife, 2006


terça-feira, 4 de março de 2014

De olho em Cuba


DE OLHO EM CUBA

Clóvis Campêlo

De olho em Cuba,
vim do Pina lançando.
Lançando impropérios
contra a arrogância
sanguinária de Tio Sam,
lançando impropérios
contra o motociclista bêbado,
lançando impropérios
contra os buracos das ruas,
lançando impropérios
contra as aves do mangue
que insistem
em seus vôos libertários
enquanto o Homem
destrói o planeta.

Recife, 2008