sábado, 31 de maio de 2014

A imagem é tudo?


A IMAGEM É TUDO?

Clóvis Campêlo

Surgida na Idade Média por uma necessidade dos pintores renascentistas de copiar com perfeição os cenários da vida real, a câmera escura terminou por evoluir para a invenção da máquina fotográfica. Nesse sentido, muito contribuíram as descobertas científicas desde aquela época.
De início, porém, a grande dificuldade era fixar as imagens fugidias e eternizá-las em qualquer suporte físico. Assim, depois de grandes experimentos e invenções, chegaram artistas e cientistas ao papel quimicamente trabalhado, que durante anos foi a moldura ideal para as imagens capturadas.
Hoje, quando as imagens foram desmaterializadas e existem ou no mundo virtual ou no espaço magnético das máquinas fotográficas atuais, tudo isso nos parecerá muito romântico.
Mas, a vida dos grandes fotográficos desde então, nunca foi fácil. Pois, além da simples documentação imagética de pessoas e acontecimentos, a eles também caberia a obrigação de personalizá-las e diferenciá-las de uma fotografia simplesmente reprodutiva.
Por si só, um simples objeto pode ter a sua imagem apreendida de várias maneiras, influenciado aí, no ato de fotografar, não só o enquadramento, como a contextualização e a bagagem de conhecimentos do fotógrafo em relação ao que documenta e à sua importância histórica ou social.
Por outro lado, a fotografia pode ser importante esteticamente ou simplesmente pelo valor documental e histórico que pode carregar nas suas informações.
Fotografar, portanto, não é simplesmente fazer com que o tempo e o espaço morram dimensionalmente contidos naquela moldura. Essa importância histórica ou estética também não dependerá diretamente da qualidade do equipamento ou da maquinaria utilizada. A sensibilidade do fotógrafo, aí, sempre será o elemento de maior importância e relevância.
Antes de chegarmos à fotografia digital, durante muitos anos usamos a fita celuloide para a obtenção de imagens. Nos anos 60, com a ideia do “make yourself”, lançada pela Kodak, as máquinas foram simplificadas e tornaram-se acessíveis a qualquer pessoa que quisesse exercitar a sua capacidade de fotografar.
Essa nova “revolução” fez com que a fotografia se popularizasse no mundo e criasse um caminho informativo de mão dupla, inverso à monopolização inicial.
Hoje, mais do que nunca, com as imagens digitalizadas e definitivamente acessíveis a todos, transformou-se a nossa percepção do mundo, tanto no que se refere ao micro quanto ao macrocosmos, bem como ao universo particular de imagens criadas ou imaginadas que cada um traz dentro da sua cabeça.
Que cada um seja definitivamente dono do seu momento decisivo!

Recife, maio 2014

terça-feira, 27 de maio de 2014

A prosperidade dos ímpios


A PROSPERIDADE DOS ÍMPIOS

Clóvis Campêlo

Meus pés quase resvalaram
ao invejar arrogantes,
que acumulam riquezas
e ocupam-se com malícias.

Têm os corpos bem nutridos
e semeiam a violência;
sua língua varre a terra,
zombam, oprimem e matam.

No entanto, estão em terreno
escorregadio e bruto,
precipitam-se em ruínas
por eles mesmos criadas;

são carne sem coração,
zumbis que andam sem alma,
desvairadas criaturas
negando a essência da vida.

Recife, 2008

sábado, 24 de maio de 2014

No tempo dos simulacros


NO TEMPO DOS SIMULACROS

Clóvis Campêlo

Mais de quarenta anos depois do fim do grupo, os Beatles ainda influenciam, de forma direta e indireta, artistas e consumidores no mundo inteiro.
Uma das provas dessa afirmativa é a existência dos numerosos grupos de imitadores da banda. Na cidade de Liverpool, na Inglaterra, seu lugar de origem, existe um encontro anual onde conjuntos do todo o mundo se apresentam para um público não só repleto de saudosistas, como também de novos e jovens admiradores. No mundo pós-moderno de hoje, a imitação pode ser um bom negócio.
Vivemos, aliás, o tempos dos simulacros. Superado o ideal da originalidade, implantado pelos sonhadores românticos de antanho, a cópia, desde que de boa qualidade, não deve mais ser reprimida. Pelo contrário, pode ser um bom e rentável negócio. Talvez não se trate mais da mimesis, onde o aprendiz de artista imitava o mestre até a exaustão e superação. Mas, simplesmente de reproduzir com fidelidade uma obra original e de grande aceitação pelo público consumidor. Existe um bom mercado para isso. Que os digam os artistas plásticos chineses que copiam com extrema perfeição e qualidade qualquer pintor ocidental de talento reconhecido. Que o digam também as dezenas de grupos musicais que imitaram e imitam os Beatles, ou as pessoas que imitaram e imitam o inesquecível Elvis, the pelvis.
Aliás, na modernidade dos anos 60, foi a originalidade do fabuloso quarteto inglês que o elevou à condição de superestrela do mundo pop. Desde essa época que proliferaram as imitações. Quem não lembra, por exemplo, que o som de Renato e Seus Blues Caps, intérpretes e tradutores brasileiros dos Beatles, durante um bom tempo, alimentou a musicalidade de várias gerações de jovens brasileiros? Posso afirmar até que aqui em Pindorama os boinas azuis cariocas eram mais cantados do que o original britânico. Coisas dessa deliciosa sociedade de consumo em que vivemos.
Hoje, findo o grupo inglês e impossibilitada a sua volta, haja vista as mortes de Lennon e Harrison, nada mais justo do que tê-los novamente através dos seus imitadores.
Além do mais, as novidades e transformações da arte não surgem a partir do nada. Elas nada mais são do que a condensação de novos a latentes anseios coletivos. A genialidade que não conseguir incorporar isso, passará despercebida como uma atitude demasiadamente adiantada para o seu tempo e que só será interpretada e decodificada a posteriori. São muitos os exemplos pertinentes a esse tipo de situação, seja na música, na literatura ou nas artes plásticas e artes em geral.
A genialidade pede sintonia e o artista protagonista nada mais será do que o instrumento dessa mudança. Nem sempre terá plena consciência do papel que cumpre e da sua importância nesse cenário de mudança.

Recife, maio de 2014

quinta-feira, 22 de maio de 2014

No terreiro da paz Salu descansa, silencia a rabeca genial


NO TERREIRO DA PAZ SALU DESCANSA
SILENCIA A RABECA GENIAL

Clóvis Campêlo

Bem mais longe de onde o olhar alcança,
bem depois do azul celestial,
entre as cores dos caboclos de lança,
sob o som de um batuque triunfal,
diferente, com uma semelhança,
sob o umbral da porta principal,
iluminado por uma esperança,
regressando ao estado original,
no terreiro da paz Salu descansa,
silencia a rabeca genial.

Recife, 2008


terça-feira, 20 de maio de 2014

Metrópole


METRÓPOLE

Clóvis Campêlo

Selva selvagem, hirta, bruta,
monóxido de carbono
negando a clorofila.
Definitivamente contaminado,
no entanto, não cantarei
o “fugere urbem”
(em minhas veias correm
partículas de chumbo,
kriptonita moderna).
Alimento-me da tua desordem,
respiro tua energia caótica,
bebo o teu ar impuro.
Amodeio-te e grito isto
bem mais alto do que
o som das tuas buzinas.
Incendeias ao crepúsculo,
violeta, violenta, violada
(insetos de ferro rasgam-te
as entranhas),
o diabo solto na rua,
no meio do redemoinho.
Estrebuchas até que
o silêncio da noite,
vasta e mesmíssima noite,
jogue sobre ti
o seu manto negro.

Recife, 1992

sábado, 17 de maio de 2014

A morte de Liêdo Maranhão


A MORTE DE LIÊDO MARANHÃO

Clóvis Campêlo

Um fato importante marcou essa semana que se encerra hoje: a morte de Liêdo Maranhão.
Contava Liêdo que na mocidade, atendendo a um convite de Naíde Teodósio, ingressou no Partido Comunista Brasileiro, onde militou até depois do golpe militar de 1964, chegando inclusive a ser Secretário de Finanças do Diretório Municipal, fazendo uma ponte entre o partido e o Movimento de Cultura Popular do Recife, durante o primeiro governo de Miguel Arraes.
Nos últimos tempos, porém, dizia-se apolítico e decepcionado com os rumos da política partidária. Afirmava que o fim da União Soviética foi uma coisa que marcou negativamente a sua crença no socialismo.
Na sua casa, no Bairro Novo, em Olinda, construiu um verdadeiro museu de arte, além de uma biblioteca impressionantemente organizada. Um dos seus maiores receios era o destino que tudo isso tomaria após a sua morte. Costumava dizer que os maiores inimigos dos livros não são as traças, mas as viúvas.
No seu acervo mantinha uma imagem em tamanho natural do ex-governador Miguel Arraes de Alencar, por quem, nos últimos anos, exercitava uma profunda aversão. Gostava de se deixar fotografar dando uma banana para a velha raposa política, também já falecida. Também mantinha uma profunda aversão pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pelo Partido dos Trabalhadores. O seu último ídolo político, inclusive, era o ex-presidente Fernando Collor de Melo.
Embora fosse uma pessoa de boa formação cultural, que gostava de declamar Baudelaire em francês e os poemas Augusto dos Anjos, Liêdo achava-se mesmo era um escriba dos excluídos, um escritor porta-voz das ideias e do modo de falar do povão.
Uma vez, nos anos 90, fomos a Beberibe fotografar Aninha, como Liêdo a chamava, uma negra linda que vendia temperos em uma barraca na feira. Aninha era uma figura simpaticíssima e estava radiante com a ideia de ser fotografada para uma capa de livro de Liêdo. As fotografias ficaram ótimas, pois Aninha era realmente uma bela mulher perdida entre os demais feirantes. Só o olhar clínico de Liêdo conseguiria perceber isso. Hoje, não lembro mais qual foi o livro que Aninha ilustrou com a sua beleza.
Uma única vez cheguei a vê-lo tocando pandeiro. Foi no Bar Savoy, também nos anos 90. Liêdo lançava o livro “Cozinha de Pobre” e acompanhou o sebista Gilberto que tocava o seu violão abrilhantando a festa.
Com a sua simplicidade, podia ser encontrado aos domingos comendo uma galinha de cabidela no Mercado da Boa Vista. Ou, durante a semana, comendo um bolo de milho em uma pequena lanchonete próxima a Praça do Sebo, que era um dos seus redutos preferidos.
Simples, Liêdo Maranhão era assim.

Recife, maio de 2014

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Poema da pedra cósmica


POEMA DA PEDRA CÓSMICA

Clóvis Campêlo

Doce como um cordeiro,
livre como um falcão.
Tecendo a sua vida
como a aranha
tece a sua teia.

Tranqüilamente só
que a vida é solidão,
muito mais do que a morte.

Simplesmente zen
que o equilíbrio
é movimento
alimentado pelo tempo
que a tudo transforma.

Firme como uma rocha
a enfrentar tempestades;
inteira, mas dividida
em duas metades.

Pedra cósmica,
sólido equilíbrio
a cavalgar o tempo,
atravessando a vida.

Pedra cósmica,
miragem na linha do horizonte,
a dividir o que é
do que será.

Recife, 1992

terça-feira, 13 de maio de 2014

Penduricalhos


Fotografia de Clóvis Campêlo/1995

PENDURICALHOS

Clóvis Campêlo

Concretos, sobre o vazio,
significam a fé,
que se vende nas esquinas
em dias de sol intenso.

Os olhos em movimento,
cortam azuis infinitos,

e refletem falso brilho.
Entre o dito e o não dito,
seguem o pai e o filho,

em busca sempre do nada,
o enganoso caminho.

Recife, 2010

sábado, 10 de maio de 2014

Azul da cor do mar


AZUL DA COR DO MAR

Clóvis Campêlo

A mim, chamou
o mar do Pina e
dividi-me entre ele
e os teus olhos de menina,
azuis da cor do mar.
E no transitório
verbo amar,
fora de mim,
encontrei em ti
o meu lugar.
Naquele território transitivo,
de mim fui fugitivo para
poder melhor te decifrar.
E quando pensava
ter encontrado
o definitivo,
foi tua a hora
de escapar,
deixando em mim
um vazio imenso,
sentimento intenso,
azul da cor do mar.
Recife, 2007

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Duzentos milhões em ação


DUZENTOS MILHÕES EM AÇÃO

Clóvis Campêlo

Éramos muitos pequenos ainda, mas já participávamos do clima reinante de euforia. Tudo nos parecia azul, inclusive o muro de combogós da casa da velha Anunciada, que ficava em frente à casa dos meus pais. A goleada já se anunciava quando decidimos pular na areia de cima do muro citado. Meu irmão Carlinhos, com apenas quatro anos de idade, deu-se mal com uma luxação no braço. Dona Tereza, minha mãe, achou que eu, por ser o mais velho, deveria ser responsabilizado pelo acontecido. Assim, antes do encerramento do tempo regulamentar, ganhei umas chineladas. Foi dessa maneira, apanhando, enquanto Didi, Pelé, Vavá e companhia bailavam na Europa, que ganhei a minha primeira Copa do Mundo, em 1958.
Em 1962, mais experiente, não me arrisquei a tanto. Além do mais, com uma crise de furunculose na coxa esquerda não teria a mesma mobilidade. Após o jogo e a vitória contra a Checoslováquia, lembro do meu pai comentando com João Amaral, um dos vizinhos, o feito inacreditável da seleção brasileira de futebol conquistando o bi mundial. Mas também foi chorando feito o menino que eu era que comemorei o título. Não só pela emoção reinante no ar, mas também por ter “magoado” as perebas durante a comemoração de um dos nossos gols. Mas tudo era alegria.
Em 1970, quando do tri, já era homem feito e servindo a gloriosa Força Aérea Brasileira. Foi a primeira Copa televisionada diretamente para nós, brasileiros, ainda em preto e branco. Alguns dos jogos da nossa seleção, assisti na Base Aérea do Recife, em serviço. Mas a grande final, contra a Itália de Gigi Riva, assisti na cada dos pais de um amigo, na Rua Comendador Morais, no Pina, que ficava na esquina da rua da zona famosa, do baixo meretrício. Findo o jogo e ganho o tri de forma contundente, só nos restava os salões de Alaíde Drinks, nossa pensão preferida, com sua radiola de fichas, para a comemoração. O meu irmão Carlinhos (fiel escudeiro, como sempre ao meu lado em mais uma final de Copa do Mundo) entrou no salão com uma bandeira enorme do Brasil, que logo se enrolou em um dos ventiladores de teto, causando uma pequena confusão. Contornado o imbróglio (afinal tudo era motivo para festa), mergulhamos na cerveja e na alegria, ao lado das raparigas e dos outros clientes. Aos dezoito anos de idade, ninguém tem motivo suficiente para ser infeliz. E, afinal de contas, éramos tricampeões mundiais de futebol, espantando de vez o complexo de vira-latas a que se referia com tanta propriedade o escritor Nélson Rodrigues.
Nem na época do regime de exceção, na época da ditadura militar, sob a tutela de quem conquistamos o histórico título, coloquei-me contra a seleção brasileira de futebol, como alguns o fizeram. Afinal, conforme mais uma afirmação rodrigueana, a seleção brasileira era a pátria de chuteiras. O povo brasileiro referendou aquela conquista e eu, que também sou brasileiro, fui atrás com orgulho e satisfação.
Se depender de mim, este ano, seremos duzentos milhões em ação!

Recife, 2014

terça-feira, 6 de maio de 2014

Absurdo Futebol Clube


ABSURDO FUTEBOL CLUBE

Clóvis Campêlo

Embora diante dos absurdos do mundo o poeta tenha dito que nada mais justificaria o uso do sinal de exclamação, todos nós nos assombramos e emitimos interjeições de espanto com a morte trágica do torcedor ao final do jogo entre o Santa Cruz e o Paraná. Que impulso estranho e fatal o teria levado a sair de casa no intervalo de uma partida que não envolvia o clube do seu coração para um encontro com a morte, em uma noite de chuva intensa na cidade do Recife?
Segundo a imprensa, como recomendou a polícia, a torcida do Santa Cruz foi a primeira ao deixar o estádio ao término da partida. Só meia hora depois é que a torcida do adversário visitante foi liberada. Mesmo assim, algum espírito maligno ousou se ocultar em um dos banheiros do estádio para praticar o ato assassino. Como explicar essa sanha mortífera em um simples jogo de um campeonato brasileiro da Série B? São indagações interrogativas que insistem em nos inquietar a mente.
Se o Estatuto do Torcedor fosse mesmo levado à sério, o Estádio do Arruda (e talvez nenhum outro do Estado, com exceção da Arena Pernambuco) não teria condições de ser liberado para nenhuma competição. Mas, tanto no campeonatos estadual, regional e no brasileiro foi vistoriado pela entidades competentes e liberado para receber o público. Isso nos leva ao entendimento de que os interesses políticos e comerciais prevalecem diante das questões que garantam a segurança dos torcedores.
Uma falsa questão e que serviu apenas para causar impacto midiático e impressionar foi a proibição da venda de bebidas alcoólicas nos estádios. Não se bebe nos estádios, mas bebe-se nos seus entornos, muito embora não me pareça que essa seja a causa dos desvarios. Pois se a bebida, que é uma droga permitida e que rende lucros e renda aos clubes e ao Estado não é permitida, a maconha e talvez outras drogas até mais perigosas são consumidas livremente nas arquibancadas. Não vejo nenhuma atitude coibitiva ou mesmo de represália em relação a esse uso. Com certeza, o louco sanguinário que arremessou o vaso do alto das arquibancadas para atingir as pessoas que estavam na rua, não podia estar em seu estado normal de lucidez.
O futebol hoje está inserido no contexto da indústria do entretenimento. Muito dinheiro rola diante de eventos que mexem com o equilíbrio emocional dos torcedores. A própria Copa do Mundo é um evento de bilhões de dólares que não pode ser interrompida ou prejudicada por fatores extrínsecos. A paixão clubística, em muitos momentos, é estimulada de forma irracional e irresponsável. Todos sabem da força social e econômica que o futebol representada no mundo atual. No entanto, transformar tudo isso em mais um motivo para estimular-se a violência é absurdo.
As pessoas que estão na minha faixa etária, lembram com saudade dos tempos em que podíamos frequentar os estádios sem a necessidade de dividir-se as torcidas. É preciso que se faça uma análise sincero e profunda para ver a partir de onde houve a transformação maligna que transformou o esporte bretão em um campo de guerra e de mortes.

Recife, 2014

sábado, 3 de maio de 2014

Não me escutes nostálgico a cantar


NÃO ME ESCUTES NOSTÁLGICO A CANTAR

Clóvis Campêlo

Diz o cronista Ruy Castro que qualquer assunto pode servir de mote para uma crônica. Até mesmo a falta de assunto, usada com maestria pelo cronista, pode ser útil. Afinal, a arte de falar muito e dizer muito pouco ou quase nada também é um direito do escrevinhador.
E foi assim, sem assunto, que comecei o presente texto. Confesso, porém, que isso às vezes isso também me assusta. Lembro de um personagem de Lima Barreto, cronista social, que se mata em plena redação por não conseguir escrever a sua cronica diária para o jornal onde trabalhava. Nada mais terrível para o escritor do que a constatação de que não consegue mais escrever.
Lembro também de que a prática constante da escrita pode fazer com que o starting do ato de escrever seja acionado com facilidade. O pesquisador Leonardo Dantas Silva é um desses que escreve diariamente, mesmo que o produto final desse exercício não seja aproveitado de imediato ou requeira um aprofundamento posterior maior. Historiador convicto, porém,a ele não interessam as ficções, mas sim a pesquisa pertinaz e científica, a comprovação devida dos fatos e histórias a serem contados. Daí a sua credibilidade e a justa fama alcançada.
Eu, contudo, prefiro a fantasia. Ou melhor, o uso puro e simples da memória que refaz a lembrança dos fatos ocorridos a medida em que o tempo passa. E, quando ela, a memória, mostra-se insuficiente, liberar a imaginação com as suas asas libidinosas de libélula. Nesse sentido, o passado próximo ou distante é sempre um manancial a ser utilizado.
O passado, aliás, já devidamente consumado, consumido e interpretado, não nos oferece mais o perigo da sobrevivência. E se a ele sobrevivemos, temos o mérito e o direito de narrar essa odisseia. Afinal, sempre será de responsabilidade dos vencedores e sobreviventes a obrigação e o direito de contar essa história. Aos perdedores que ficaram ao longo do caminho, as batatas! As rosas e os mortos não falam! Quando muito, a voz calada dos mortos, por uma questão de generosidade ou justiça imaginada, pode estar embutida na narrativa vitoriosa dos vivos. E nada mais do que isso.
Afinal, o coração e o mundo tem razões que a própria Razão desconhece. Fatores intrínsecos e nem sempre muito bem compreendidos é que movimentam a roleta das mudanças e do entendimento, além, é claro, dos interesses mesquinhos dos que podem interferir nesse rumo e não o fazem ou o fazem de maneira tendenciosa, o que é muito pior.
Se as águas inertes do passado não movem mais o moinho do mundo, embora possam servir de alimento aos poetas, são as águas incertas do futuro que trarão o porvir.
E nelas, espero que nunca me escutes nostálgico a cantar.

Recife, 2014

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Power to the people


POWER TO THE PEOPLE

Clóvis Campêlo

"Power to the people,
power to the people",
gritava o radinho de pilhas
enquanto você me beijava
e o seu beijo tinha
um gosto de goiaba.
Era engraçado,
mas era verdade
e a felicidade era
uma tarde de verão
na praia do Pina.
Power to the people,
meu bem,
seu beijo era
pura adrenalina.


Recife, 1985