segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

A modernidade romanesca


A MODERNIDADE ROMANESCA

Clóvis Campêlo

O romance moderno, enquanto afluente caudaloso das artes contemporâneas, reflete as transformações e as influências sofridas por estas como consequência do processo evolutivo a que está sujeita as sociedades dos nosso dias.
Consideremos que um dos aspectos da modernidade e do sentido de oposição cultural romanescos está na sua ausência de raízes na cultura greco-latina e na sua condição de autêntica criação das modernas literaturas européias. De certo modo, o espírito de oposição cultural manifesto pelas artes a partir do romantismo, acompanha o romance desde o seu nascer. Antes de seguirmos essa linha de raciocínio, porém, vamos definir a etiologia da palavra romance, tomando como base as palavras esclarecedoras de Vitor Manuel de Aguiar e Silva sobre o assunto:

"Na Idade Média, o vocábulo romance (espanhol romance, francês romanz, italiano romanzo), designou primeiramente a língua vulgar, a língua românica que, embora resultando de uma transformação do latim, apresentava-se já bem diferente em relação a este idioma. Depois, a palavra romance ganhou um significado literário, designando determinadas composições redigidas em língua vulgar e não na língua latina, própria dos clérigos. Apesar das suas funções semânticas, o vocábulo romance passou a denominar sobretudo composições literárias de cunho narrativo. Tais composições eram primitivamente em verso - o romance em prosa é um pouco mais tardio -, próprias para serem recitadas e lidas, e apresentavam muitas vezes um enredo fabuloso e complicado". (01)

Observamos, portanto, que o mesmo contexto cultural que permitiu o afloramento dos substratos linguísticos transformadores do latim em novas línguas, também abriu espaços para o surgimento de um gênero literário sem identidade com a tradição cultural antiga (a ideologia do dominador) e reveladora do conflito cultural a que estavam submetidas as camadas sociais não dominantes. Nesse sentido, não é de se estranhar que tais composições apresentassem um enredo fabuloso e complicado. Guardadas as devidas proporções, podemos fazer outra ligação ainda pertinente, aproximando-nos ao que José Guilherme Merquior, ao analisar o experimentalismo formal do modernismo, define como uma subversão das virtudes da obra pela ótica de "ideologias em eclipse". (02)
O romance dessa época, que aguiar classifica como "medieval" (03), ao ser confrontado com as canções de gesta, das quais era contemporâneo, mais uma vez nos fornece os indícios de que, além de corresponder ao paradigma luckaciano de que "todo novo estilo surge como uma necessidade histórico-social da vida " (04), traz em si, embora de maneira ainda tênue, o germe da oposição cultural que viria a se radicalizar nos românticos.
Do ponto de vista formal, difere aquele desta no que se refere ao "andamento": enquanto o romance medieval era lido e recitado, a canção de gesta era cantada.
É no aspecto conteudístico, porém, que se mostra a mais marcante divergência entre as duas formas: enquanto as canções de gesta contavam as façanhas de um herói mítico personificador dos valores de uma coletividade, o romance medieval centrava-se nas ações de um personagem comum, embora ainda ligado ao ambiente cortês.

Recife, 1993


Referências bibliográficas:
01. Vitor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, São Paulo, Martins Fontes, 1976, p. 250.
02. José Guilherme Merquior, Formalismo e Tradição Moderna: o problema da arte na crise da cultura, Rio de Janeiro, Forense-Universitária; São Paulo, Ed. da USP, 1974, p. 83.
03. Vitor Manuel de Aguiar e Silva, op. cit., p. 250.
04. George Luckás, Ensaios sobre literaturas, 2 ed., São Paulo, Ed. Civilização Brasileira, s.d., p.57.

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