domingo, 14 de agosto de 2016

A Igreja da Boa Viagem




Fotografias de Clóvis Campêlo / agosto 2016

A IGREJA DA BOA VIAGEM

Clóvis Campêlo

Como diria Paulo Cavalcanti, o caso eu conto como o caso foi!
Começo fazendo minhas as palavras do escritor João Braga, no livro Trilhas do Recife - Guia Turístico, Histórico e Cultural. Segundo ele, na metade do século XVI já existia naquele local um comércio conhecido como a Venda do Piolho, por onde passavam obrigatoriamente todos os viajantes que seguiam rumo ao litoral sul do Estado. Sobre a igreja propriamente dita, afirma que o mais antigo documento conhecido é datado de 1707, e se refere a uma doação feita ao padre Leandro de Carvalho do local onde existia um oratório a Jesus, Maria e José. A igreja, como hoje nos é conhecida, provavelmente foi construída em torno de 1760. Nela se encontra a imagem de Nossa Senhora da Boa Viagem.
Já o pesquisador Carlos Cavalcanti, no livro O Recife e Seus Bairros, é mais explícito. Segundo ele, nas terras doadas por Baltazar da Costa Passos e sua esposa, Ana de Araújo Costa, através de escritura datada de 6 de janeiro de 1707, resolveu o padre leandro de Carvalho construir uma igreja sob a invocação de Maria Santíssima e mandou fazer uma imagem com o título de Boa Viagem para que os pescadores, nas viagens pelos mares, tivessem a proteção da Santa e alcançassem o sucesso almejado.
Ainda segundo Cavalcanti no livro citado, a Capela da Boa Viagem deu nome à praia e ao bairro que posteriormente iria surgir no entorno da igreja. Seguindo suas palavras, a igreja é em estilo barroco, encontrando-se hoje bastante descaracterizada por conta das várias reformas recebidas ao longo do tempo. No seu interior, encontram-se as imagens de Nossa Senhora da Boa Viagem, Santana, São José, Santo Elesbão, São Benedito, São Gonçalo do Amarante e do Senhor Morto. O altar-mor da sacristia é um trabalho precioso do mestre entalhador José Pereira. Sobre este último, porém, procuramos sem sucesso maiores informações.
Vejamos, no entanto, o que diz a pesquisadora Samira Adler Vainsencher no site da Fundaj: "Durante a grande reforma (1862), os religiosos preservaram alguns altares, entre os quais o da sacristia da Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem. Datado de 1745, esse altar foi entalhado pelo mestre João Pereira, e dourado pelo artista Francisco Teixeira Ribeiro, no ano de 1772".
No livro Velhas Igrejas e Subúrbios Históricos, o escritor e pesquisador Flávio Guerra afirma o seguinte sobre a igreja: "Foi um dos templos religiosos, embora modesto, de maior rendimento patrimonial do Recife, no tempo da colônia. Basta que se diga que em 1760, segundo ainda nos dá notícia Pereira da Costa, o seu usufruto era de cinco grandes sítios, quatro pequenos e vinte casas térreas no povoado, além de um pequeno sítio de coqueiros na praia, doado pelo padre Luís Marques Teixeira, com o único compromisso de tirar-se da sua renda "a quantia necessária para se conservar acesa dia e noite a lâmpada da capela-mor da Igreja"".

Recife, agosto 2016

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

O poeta e o macarrão




Fotografias de Clóvis Campêlo / agosto 2016

O POETA E O MACARRÃO

Clóvis Campêlo

A Praça da Independência, no bairro do Santo Antônio, no centro histórico do Recife, é uma das praças mais antigas da cidade. Segundo consta, durante o domínio holandês, aparecia nos mapas da época o local denominado Terreiro dos Coqueiros. Depois, mudou de denominação por várias vezes, sendo chamada de Praça Grande, Praça do Comércio, Praça da Ribeira e Praça da Polé. Em 1816, após uma reforma, mudou de denominação para Praça da União. Finalmente, em 1833, recebeu o nome atual de Praça da Independência. Porém, por abrigar durante muitos anos o prédio do jornal Diario de Pernambuco, o jornal mais antigo da América Latina ainda em circulação, e seguindo o gosto popular sempre foi chamada de Pracinha do Diario. 
É lá, entre tantos outros bustos e esculturas, que se encontra a estátua do poeta pernambucano Carlos Pena Filho. Sentado numa mesa, de frente para a Igreja Matriz  de Santo Antônio, e muito próximo ao local onde funcionou o Bar Savoy, reduto frequentado pelo poeta e pelos boêmios da sua geração.
Hoje, já não existe mais o Savoy e o prédio do Diario encontra-se abandonado e decadente, como de resto toda aquela área, abandonada pelo poder público e pelo poder econômico.
Apodrece o centro do Recife e quase não há mais vestígios da suntuosidade de décadas atrás, quando ainda éramos uma cidade previsível e cuidadosa com as suas relíquias culturais e históricas. A praça hoje, na sua maioria, é frequentada por prostitutas decadentes, pelo comercio informal e pelo lúmpen ocioso,  além de eventuais larápios e descuidistas. Afinal, o que teria esse povo a ver com um poeta falecido nos anos 60 e totalmente dele desconhecido? Como respeitar essa imagem que não lhes comunicada absolutamente nada?
Assim, como aconteceu com outras escultura do Circuito da Poesia no Recife, a escultura do poeta Carlos Pena Filho já teve um dos braços arrancados e o nariz fraturado. Afinal, ocupa um lugar que hoje já não lhe diz mais respeito. Invadido pelo povo periférico e pelos excluídos, em nada com eles se identifica.
Segundo os estudiosos do poeta, a poética de Carlos Pena Filho, é carregada de oralidade e musicalidade, possuindo forte apelo pictórico. Visual e plástico, o poeta “pinta” o poema com palavras. Dono de um lirismo envolvente, é um poeta de imagens plásticas onde se destaca a cor, o movimento e a luz. Escreveu vários poemas tendo nos títulos a palavra retrato e cerca de uma centena contendo os nomes das cores ou referências a elas. Morreu ainda muito jovem, aos 31 anos, envolvido em um acidente de trânsito, quando o trânsito no Recife ainda era domesticado e possível.
A agressividade contra a escultura do poeta, demonstrada pelos transeuntes frequentadores da Pracinha do Diario, inocentes mas não tão desprovidos de periculosidade, talvez seja explicada pelos sociólogos de plantão. O poeta, imortalizado em pedra, continua lá insone, apático e inerte, a mercê do vandalismo gratuito.
Mas nem sempre a interferência é destrutiva, embora possa continuar sendo desrespeitosa. Essa semana que começa a se findar, ornamentaram a cabeça do poeta com uma porção de macarrão cozido com colorau ou molho de tomate (não sei se o populacho curte tamanho refinamento...).
Para um poeta que sugeria imagens com as suas palavras, ter a sua imagem ornamentada com os carboidratos do macarrão, nos inspirou a escrever a presente crônica, além de fazer o devido registro fotográfico como prova cabal do "crime' cometido e protegido pelo anonimato das ruas.
Ao vencedor, as batatas! Ao poeta pernambucano, esquecido e com a escultura abandonada à própria sorte, macarrão ao molho de tomates.

Recife, agosto 2016