quinta-feira, 8 de junho de 2017

Sentimento e solidão


Memphis Slim, o criador de Blue and Lonesome

SENTIMENTO E SOLIDÃO

Clóvis Campêlo

Houve um tempo em que dona Cida, minha mulher, esmerava-se na cozinha em receitas fabulosas. Talvez levada pela máxima de que um homem também se prende pela boca e pela barriga. Depois, cansou e confessou: “Estou sem novas ideias. Vou voltar ao trivial”. O trivial, para ela, seria o velho feijão, arroz, legumes e um pouco de carne. Funcionou à contento. Todos ficaram satisfeitos e bem alimentados.
Acredito que isso foi o que aconteceu com os Rolling Stones. Depois de onze anos sem gravar em estúdio, no final do ano passado gravaram Blue & Lonesome, um disco sem músicas inéditas e com velhas canções de blues. O trivial. Também funcionou e todos ficaram satisfeitos e bem alimentados.
A música que dá nome ao disco foi composta por Memphis Slim, pianista, cantor e compositor negro americano, nascido em Memphis, no Tenessee, no dia 3 de setembro de 1915, e falecido em Paris aos 72 anos, em 24 de fevereiro de 1988, de insuficiência renal. Seus restos mortais estão enterrados na cidade em que nasceu.
Fico pensando que voltar ao trivial foi um golpe stoniano de mestre. Setentões e podres de rico ainda teriam algo de novo a dizer para o mundo de hoje? O longo hiato talvez traduza isso.Afinal o blues pode traduzir com perfeição sentimentos entendíveis por todas as gerações. E até mesmo transformar possíveis negatividades em expressões atualizadas de contemporânea alegria. Como nos diz Daniel Corrêa em texto publicado na revista Rolling Stones: “A voz de Jagger, desgastada pelo tempo, acaba mudando o sentido que as frases tinham. De sofridos relatos de amor, muitas delas soam como vivas canções de experiência. De como o tempo traz autoconhecimento”. Falado e dito.
Aliás, quem não gosta de blues bom sujeito não é. E é preciso reconhecer que o gênero, ao desembocar no cenário urbano moderno, em terras americanas e mundiais, ganhou novas conotações. De lamentos repetidos monocordicamente para expressões de extases, foi um pulo. As guitarras elétricas ajudaram nessa metarmorfose ambulante. O blues mudou. E mesmo as velhas canções de sentimento e solidão, podem soar com outros timbres. Quem escutar, verá!
Como dizia o finado John Winter, uma boa música de blues deve sempre ser suja e barulhenta. É claro que nessa afirmativa, ele se refere ao blues do seu tempo: eletrificado, gritado e sem requintes excessivos tecnológicos de gravação. Os Stones, com as suas guitarras primárias, também conseguem isso: Blues & Lonesome é um disco básico. Qualquer outra intervenção mais requintada, como a elegante guitarra de Eric Clapton em duas músicas, pode logo ser detectada. Como diz o mesmo Daniel Corrêa no texto acima citado: “Blue & Lonesome é disco essencial para se ouvir e guardar na coleção. O único problema é a sensação de já estar ouvindo essas canções na voz dos Stones desde sempre, não como se fosse uma novidade, e não ter aquele gostinho de imaginar como seria ouvir novas canções autorais dos Stones, como o ótimo single “Doom & Gloom”, de 2012”.
Ou mesmo como diz o co-produtor do disco, Don Was, em material publicitário: “Este álbum é um testemunho manifesto da pureza de seu amor por fazer música, e o blues é, para os Stones, o manancial de tudo o que eles fazem”. Mais uma vez, falado e dito.
Para mim, só nos resta escutá-los!

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